quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Sartoris - William Faulkner. Projeto Um livro sempre.



Sartoris

William Faulkner
Cosac Naify. 2010

Faulkner ganhou o Nobel de literatura em 1949, 22 anos depois deste que foi praticamente a estréia na literatura. Ainda que eu seja muito reticente quanto a prêmios, e em especial o Nobel não tem muita moral, porque depois de não premiarem o Guimarães Rosa, O Borges e o Joyce nenhum premio pode ser levado a sério, resolvi fazer um exercício, de qual seria a razão LITERÁRIA, e não a política, para este premio. Uma consideração que talvez soe inútil, mas que serve como fio condutor de algumas reflexões.

A primeira idéia que me ocorre, é que os suecos resolveram premiar um autor que consegue fazer da sua aldeia o mundo, para usar o mote sobre a literatura preconizado por Tolstói. O povoado fictício, mas claramente fincado no sul dos EUA é o cenário e palco para dramas daqueles roceiros caipiras e turrões, racistas, machistas e toscos, que entretanto falam de todos nós o tempo todo.

A segunda idéia me é mais instigante: a academia conseguiu perceber como o autor fazia na escrita, a língua inglesa tossir, engasgar, emudecer, tergiversar. A escrita não é fluída, como não é a vida, nem as relações, os sentimentos e os diálogos. Seu texto nos obriga a um esforço para entender o movimento, o andamento dos fatos e episódios. Como num jardim japonês, nada se mostra inteiro, você precisa sair do seu lugar para ver o que está ocorrendo.

Mas é a terceira idéia que me seduz mais. Há a história, ou as histórias, personagens que se misturam, brigam, amam e desenrolam a narrativa, mas há algo que subjaz ali, é a fala sobre o tempo, sobre as perdas, sobre uma história que atravessa, inexoravelmente e deixa tudo e todos para trás, num passado, que por mais que seja repisado e rememorado, é passado. Fala das marcas, duras, deixadas por eventos, relações, escolhas, acidentes e sortes, cicatrizes nos corações, nas falas, nos medos e expectativas.

Sartoris é o sobrenome da família protagonista. O velho Bayard Sartoris é o turrão patriarca da família, reduzida agora a Uma sobrinha de 80 anos e o filho Bayard, gêmeo de John, morto em combate em frente a seus olhos que nada pôde fazer para evitar isso. Esses são os vivos, mas é com o time dos mortos que a história se completa, a esposa falecida, o filho perdido na guerra, o irmão que escolheu voar num avião destinado a não funcionar, chefes, subordinados, escravos, tempos de outrora que são relembrados, que servem de âncora, lastro, peso morto, obstáculo à vida.

Nem vou tentar resumir a história, porque ela não tem a menor importância. Importa o clima, denso, no qual pequenos eventos são marcas que sempre se ligam a essa história de fundo, a história dos Sartoris, imutáveis, turrões, difíceis. É o tempo que não muda, mesmo quando o progresso e as mudanças sociais parecem inevitáveis. Eles não mudam. O local não muda. Nada muda neles. E talvez por isso, sua decadência é inevitável, visível a todos mas não afirmada por ninguém, eles são o retrato do fim de uma era.

E a vida segue, e ganha o jogo...





domingo, 24 de agosto de 2014

Underground – Mentiras de guerra. Projeto Um filme quando valha à pena



Underground – Mentiras de guerra

Diretor: Emir Kusturica
Iugoslávia: 1995

Um grande filme conta histórias, não uma história apenas, mas várias, e não por ter vários personagens, mas por desenvolver várias narrativas simultaneamente. Fala-se de várias coisas, todas entrelaçadas, como, por acaso, é a vida de cada um de nós, de nossas famílias, grupos, países, etc, etc, etc

O que foi a Iugoslávia desmembrou-se depois de uma guerra genocida, que não é fácil de entender, dada a complexidade dos participantes de diferentes regiões, etnias e credos, mas podemos sempre partir do pressuposto que se houve uma guerra é porque havia interesses vários em jogo, e nem sempre interesses bonitos.

Há os interesses pessoais, e temos dois personagens principais, amigos-irmãos, Marko e Blacky, que se divertem, sacaneiam os outros, se viram para sobreviver. Com a invasão inimiga o país fica de pernas para o ar e por um acidente Blacky se fere e Marko o esconde num porão, com mais uma dezena de camaradas comunistas. Lhes pede que produzam algo para lutar contra o inimigo, que segue como invasor. Num determinado momento isso deixa de ser verdadeiro, e o interesse de Marko, de roubar a mulher do amigo prevalece e ele os mantem no porão mesmo com o fim da invasão, mantendo a farsa, uma das mentiras da guerra, que tudo segue igual.

A traição vai de mal a pior, não há saída que não a queda do disfarce, que ocorre por outra guerra, agora a da dissolução da Iugoslávia, e a irrealidade da vida no porão necessitará confrontar-se coma irrealidade do mundo atual, numa outra guerra tão irreal quanto a que eles viveram anos e anos trancafiados.

O filme é uma pérola poética, porque se há algo que só o cinema pode fazer, é traduzir em imagens o que o pensamento faria com mais lentidão ou dificuldade. Há cenas antológicas, e destaco apenas a final, na qual os mortos do filme (só alguns, afinal, é um filme de guerra e morte é o que não falta nunca...) se encontram num novo território, o qual vai separando-se (como a Jangada de Pedra de Saramago) do continente, vagando à deriva, enquanto a festa continua rolando solta...         











    

                              


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Solaris - Stanislaw Lem. Projeto Um livro sempre



Solaris

Stanislaw Lem
Ed. RelumeDumará, 2003

É desse livros que tem vários elementos que nos fascinam, envolvem e permitem que entremos no mundo da ficção. Solaris é o nome de um planeta, diferente do nosso, não como o construído por Haruki Murakami no seu 1Q84, que era simplesmente um duplo da nossa Terra, no qual alguns acontecimentos extraordinários podiam ocorrer. Em Solaris fenômenos que não se explicam ocorrem, o tempo todo. Como na vida, já começando o comentário por onde ele tem de ir.

O planeta tem dois sóis, e por isso duas auroras, uma do sol vermelho outra do sol azul. É todo recoberto de líquido, um oceano imenso, mas lança acima da superfície, uma quantidade enorme de projeções, inexplicáveis, belas, instáveis, incompreensíveis. Quando o protagonista chega a Solaris faz já 100 anos que estudos são feitos sobre o que é aquele oceano, que sentido ele tem, que significado tem essas “construções”, como “comunicar-se” com esse oceano, e por aí vai. A ciência é muitas vezes uma ficção mesmo...

Na estação espacial reina um clima de estranheza, estando apenas 3 pessoas, recebem a visita, cada um deles, de uma “pessoa” que é algo como uma materialização de alguém que fez parte da vida, no passado, e que no mais profundo desejo daquele que sonha, aparece para conversar, brincar, transar, amar, aterrorizar, segundo o “visitado” tema, ame, aja ou fuja. O oceano propõe um visitante, que é e ao mesmo tempo não é aquele(a) que foi “real” na vida de cada um dos 3 cientistas da estação.

Essa é a trama. Num resumo muito rápido e superficial, mas é de uma beleza ver a dificuldade do protagonista, o psicólogo Kelvin, deparar-se com sua ex-namorada, que suicidou-se após ele abandoná-la, e confrontar-se primeiro com a estranheza e susto do encontro, depois com a dificuldade de aceita-la como real, mas por último, com o amor que começa a sentir, primeiro pela lembrança da sua amada, e cada vez mais pela amada que agora se apresenta a ele, que é e não é a mesma. Como cada um de nós, que somos e não somos os mesmos.

Em BladeRunner, e no livro que o originou, Sonham os androides com ovelhas elétricas? Há uma questão similar, o protagonista sabe que ama uma robô, que é perfeita réplica de um humano. Mas isso não importa, ele a ama e terminamos o livro, e o filme, desconfiando se ele mesmo não é um replicante. Aqui, em Solaris, temos o tempo todo esse questionamento: e será ele, e seremos nós, algo diferente daquele(a) que amamos? Será nossa realidade diferente da do outro? O fato da visitante ser uma projeção, faz dela algo impossível?

Em última instância, é uma discussão sobre o amor e os sentimentos, a realidade do que sentimos e o quanto o outro é visto muito mais por como o queremos ver, do que pelo que ele é. O tempo todo tenta-se descobrir o que o oceano de Solaris é, e o que quer fazer com os humanos, o tempo todo ele é indecifrável, inominável, incompreensível. O tempo todo tentam os 3 cientistas resolver como lidar com seus visitantes, que sempre os surpreendem, pela teimosia, força, inadequação às expectativas mas, principalmente, veracidade, intensidade na expressão de si. Não por outro motivo o protagonista se apaixona pela imagem de seu passado, ela é ao mesmo tempo aquela que morreu, e outra, a que ele deseja, mas ao mesmo tempo, uma outra, que ele não sabe quem é, como ela tampouco, como nós tampouco, como ninguém sabe exatamente quem é e quem é o outro.

Há então dois tipos de alteridade, o dos visitantes, e o do oceano. Sobre este segundo, caberia fazer um comentário mais alongado, pois é muito raro vermos algum “personagem” que não é antropormofizado ou antropomorfizável. Sempre que vemos aliens, no cinema ou livros, eles são umas pessoas diferentes, pela cor, tamanho, língua ou comportamento, mas não deixam de ser humanos. Raramente nos deparamos com uma alteridade tão outra, ao ponto de ser incomunicável. Aqui, o outro não se parece em nada conosco.

Por último. Esta tradução é muito superior a uma outra lançada nos anos 70, e que foi a primeira que li, aqui, o texto flui e a história cativa. Não se engane pela capa, por sorte o conteúdo é infinitamente superior à versão cinematográfica do Sorderberg...


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Breve Romance de Sonho - Projeto Um livro sempre



Breve Romance de Sonho

Arthur Schnitzler
Editora Folha, 2003

Quando Schnitzler escreveu este realmente breve romance, a literatura já tinha dado alguns passos na direção do fluxo de consciência e da construção de uma narrativa onírica que rompia com o padrão vigil de contar uma história mais ou menos lógica, com encadeamantos mais ou menos razoáveis e desfechos mais ou menos coerentes. Mas ainda não tínhamos o Finnegans Wake, que viria à luz 13 anos depois deste livro, e que romperia em definitivo com qualquer possibilidade de compreensão desperta do universo do sonho, mas essa é outra história e fica para outra resenha, a do Finnegans Wake...

Quando Scnitzler escreveu seu Breve Romance do Sonho, Freud já era conhecido e a teoria psicanalítica dava passos mais firmes no terreno da compreensão do inconsciente. Mas Schnitzler não era psicanalista, mesmo sendo médico e psiquiatra de formação, tomou a literatura como o que ela é: criação de um universo narrativo artístico, não uma elaboração científica de teorias. Por isso este romance tem uma rapidez e intensidade que surpreendem e provoca uma certas vertigem, pela velocidade na que se conta a história, mas principalmente, pelo modo como se cria um ambiente de sonho, de irrealidade, de incompreensão do que está ocorrendo.

O marido é um médico. Depois de uma festa à fantasia, onde ocorre algum flerte e um certo clima insinuante com parceiras e parceiros, o casal fica mais ativo eroticamente. A esposa resolve contar uma fantasia que teve algum tempo atrás, que não vingou, mas deixa o marido completamente atônito e com a sensação de traição muito marcada. A partir daí, numa escalada de irrealidade e incursão no mundo das sombras do erotismo, ele vagará até quase entrar no reino da morte. O trajeto é feito pelos encontros com diversas mulheres, a filha de um paciente que acaba de morrer, e se declara apaixonada por ele; uma prostituta que recusa na hora H; a filha adolescente do dono da loja de fantasias e por fim as mulheres nuas no ritual que ele consegue entrar sem ser convidado e da qual é retirado a salvo pela intervenção de uma das beldades que se oferece para ser punida em seu lugar.

Retorna ao mundo vigil, mas o que viveu naquela noite o acompanha, e ele refará o caminho agora desperto, reencontrando as mulheres que pela noite despertaram sensações intensas, desejos proibidos, insinuações reprimidas. Os reencontros entretanto não serão o que ele deseja, não há a concretizacão de nenhuma das possibilidades ou promessas imaginadas, apenas a decepção e o medo de ultrapassar limites. O sonho não se pode viver acordado.

Terminará ele contando tudo à esposa, para poderem voltar à rotina. Se voltarão ou não, não sabemos. Sua filha ri na sala e o livro termina.

Stanley Kubrick fez uma adaptação brilhante do livro em seu último filme, De olhos bem fechados, tomando algumas liberdades narrativas que intensificaram o clima mais paranóico do personagem, a trama mais policial ficou ressaltada, sem perder o estranhamento do livro, que fica como um marco da narrativa que provoca o leitor nesse diálogo esquisito entre o sonho e a sobriedade vigil. Nunca há uma saída fácil.