quarta-feira, 27 de junho de 2012

The Bang-Bang Club - Projeto Um filme quando valha a pena.


Repórteres de Guerra (The Bang-bang Club, 2010)

Então faz de conta que existiu um mundo no qual quem tinha a pele branca dominava quem tinha a pele preta, e que nesse mundo fictício, os negros eram tratados como coisas de segunda categoria e os brancos, mesmo sendo minoria e estrangeiros conseguiam seguir mandando e desmandando, matando e desaparecendo com quem quisessem. Aí um belo dia começa a ocorrer um movimento de autonomia negra e um líder (preso e miraculosamente não morto) aparece como aquele que pode ser a saída para os negros fodidos, e para os brancos que já estavam sendo escorraçados no cenário internacional. E então Nelson Mandela ganha a eleição, a ANP entra para o governo e a barbárie do Apartheid acabou, formalmente pelo menos.

Pensar que estou falando de algo que não tem sequer 20 anos é surpreendente. Porque o muro de Berlim caiu em 1989, e o colapso da União Soviética e do Comunismo como regime de governo é celebrado e indicado como um passo fundamental do que vivemos hoje. Mas, o fim do Apartheid não teve o mesmo impacto nem celebração. A violência segue, a pobreza segue e as diferenças seguem, igualmente intoleradas.  Nos anos pré eleição Sul Africana os brancos manipularam uma etnia, os Inkata, para acirrar os conflitos com os Zulus, partidários de Mandela e da ANP, intolerâncias tribais usadas para a manutenção do poder dos brancos. Simples assim, sujo assim, violento assim.

Um grupo de fotógrafos está no local, prato cheio de fotos e violência cotidiana. Zulus contra Inkatas, Inkatas contra Zulus, polícia descendo a lenha, não faltavam situações para fotos impactantes, constrangedoras, vergonhosas. Mas a coisa seguiu muito tempo. O filme conta a história desse grupo, sua formação, o nome meio dado de brincadeira, os riscos e situações que viveram, o fim do grupo com a morte de dois dos fotógrafos. Acompanha a transição final, os estertores do regime genocida sul africano, e os prêmios ganhos (dois Pulitzers) um deles na Africa do Sul, o outro no Sudão, com uma das fotos mais impactantes que conheço:



A foto é de Kevin Carter, e não seria injustiça dizer que o filme todo é pretexto para a história desta foto e do que ela representa. Porque ele foi atacado por não ter feito nada para salvar a menina que logo em seguida foi comida pelo abutre, “porque você não a salvou?” e possivelmente essa foi uma das razões de seu suicídio.

Mas sua foto salvou milhares de outras vidas, pelo constrangimento ocidental que causou e pela culpa de nossa imobilidade frente a situações absurdas como a que essa foto retrata.

Entretanto, a questão segue sem resposta: qual é a ação que o artista pode, deve, tem de fazer no mundo, quando este mundo demanda tantas ações (e confortavelmente sentados aqui questionamos isto...)? É o produzir artístico ação suficiente? É pelos desdobramentos que uma ação seria suficiente? Há algo que seja suficiente? Poderíamos aceitar os limites de nossa ação num cenário como esse?

Escolher trabalhar com fotos de guerra é uma decisão pessoal, uma mistura de acaso, surpresa, ilusão, oportunidade. Mas já o indicou Nietzsche em um momento de sua obra, que tomássemos cuidado, pois ao olhar o abismo firmemente, nós também corríamos o risco de tornar-nos abismo...


quinta-feira, 21 de junho de 2012

Xingu - Cao Hamburguer - Projeto Um filme quando valha a pena


Xingu

Há filmes que são bons como filmes, há outros que tem sua qualidade ligada ao momento em que são lançados, outros ainda que importam pela “mensagem”, outros que conjugam varias destas e outras qualidades. Cada um levantará “porquês” deste filme ser bom ou valer à pena.

Xingu é o segundo longa de Cao Hamburguer. Ele havia feito o delicado O ano que meus pais saíram de férias, tratando da ditadura brasileira e do desaparecimento e tortura de ativistas de esquerda, com um cuidado que raramente se via por aqui, e muito menos para um tema dessas dimensões emocionais. Sem pieguice, sem subterfúgios mas sem dramalhismos: enfrentar um tema doído com coragem, distanciamento e poesia, muito bom para algo que no Brasil até pouco tempo atrás era rareza... fazer filmes decentemente!

E se é verdade que ainda há muito filme ruim aqui, também o é que cada vez mais aparecem filmes que tem valores diferentes, dentre eles o de contar nossa história, fazer cinema da história e construção da nossa identidade, ampliar nossa identidade pela ampliação de fontes e sentidos.

Estamos cansados de ver filmes do faroeste gringo, da conquista do oeste, da matança dos índios, do aliciamento de uma tribo para a conquista de outra, os forte-apaches que resistiam aos ataques e serviam como base operacional para exploração do território desconhecido. Mas não sabemos nada do processo que ocorreu no Brasil. O país foi achado casualmente pelos portugueses, colonizado décadas depois e explorado até a independência. Mas só isso?

Então aparece Xingu, conta a história da criação do Parque Nacional do Xingu pelos irmãos Villas-Boas, e conta muito mais que isso. Fala de um Brasil em formação, no qual os espaços eram (eram???...) leiloados por interesses particulares; de um Brasil que pensava tornar-se unidade e que não sabia, não soube e ainda não sabe integrar diferenças; de um Brasil que oscilava, oscila e provavelmente oscilará entre o desenvolvimento, a preservação e a estagnação política, econômica, cultural.

Mas fala dos irmãos atrevidos, loucos, visionários, que se apaixonaram pelo projeto de fazer um Brasil dentro do Brasil, criando um espaço de preservação que era, e eles o sabiam, um espaço de confinamento ao mesmo tempo. Que viveram o drama de desejar preservar e conhecer, mas saber que naquilo que colocassem a mão, transformariam e desapareceria o que ali existira antes deles. Que o homem branco destrói o que quer cuidar e que o que eles mais podiam almejar, dada essa condição, era chegar antes, para postergar ao máximo o tempo do fim.

Com uma interpretação magistral de João Miguel no papel de Cláudio Villas-Boas o filme merece ser visto e usado como processo pedagógico em qualquer aula de história do Brasil, economia, antropologia e psicologia ou, para resumir, em qualquer curso que se queira debater quem somos nós. Talvez por ter assistido o filme no decurso da Leitura do Mason & Dixon do Thomas Pynchon , tenha ficado com esta questão da identidade e da construção da nossa imagem tão forte, independente das minhas razões, cabe a cada um aventurar-se nos descaminhos do construir-se e descobrir-se!!



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Thomas Pynchon - Mason & Dixon - Projeto Um livro Sempre


Mason & Dixon - Thomas Pynchon

A literatura é uma das formas mais instigantes de contar histórias que não interessam a ninguém e fazer delas algo envolvente, fundamental, criativo, central na existência do leitor por muitos anos, durante e depois da leitura ter acabado.

Senão, como enfrentaríamos 840 páginas das aventuras e desventuras de dois ingleses do século XVIII, nas viagens até o cabo da Boa Esperança, de lá à Ilha de Santa Helena e alhures?
E o alhures em questão são os estados dos Estados Unidos da América, local para onde vão o astrônomo e o agrimensor a fazer a divisão racional de uma região que vivia em contendas por diferenças de seus “chefes tribais” (porque mesmo sendo brancos a coisa era desse nível...).
Ao fazer isso delimitam estados, traçando linhas retas para fazer divisas. Divisas geográficas usualmente seguem acidentes geográficos, rios, montanhas, planícies.  Os EUA, como qualquer olhada num mapa comprova, tem uma divisão completamente linear e sob certos aspectos absurda (não mais absurda que QUALQUER outra divisão,  apenas absurda ‘do seu modo’).
E a história toda é o trajeto do Astrônomo Mason e do Agrimensor Dixon para traçar a divisão entre norte e sul, que depois de torna divisão entre estados escravagistas e livres; assim como também é a linha leste oeste aquela que abre a trilha para o “progresso” civilizatório e a ruptura de outras linhas, indígenas, naturais etc.

E a questão lindamente posta é: como se dá a construção de um país, de um imaginário de um povo, de sua identidade?
Porque toda delimitação é definição de limites (como evidentemente a palavra indica) que faz com isso a afirmação de algo. Um “eu”, uma coisa, um território, uma idéia. E uma linha demarcatória define qual lado é Pensilvânia e qual Maryland (o lado “real” do livro) mas define muito mais que isso: que país é este? Como nos formamos como povo e como identidade nacional? O que nos define como estado-unidenses (e no nosso caso brasileiros)? Qual é a linha que faz de nós, nós?


Thomas Pynchon é um autor irregular, afora a idiossincrasia de não mostrar-se em publico desde muito tempo atrás (sua ultima foto é com 17 anos...) há pouco o que dizer da pessoa folclórica, pelo que se inventou dizer dele, e simplesmente recluso no que interessa ao escritor: ESCREVER!!

Há livros dele simplesmente arrebatadores (cada um tem seus gostos, o meu é Vineland), pela construção de uma miríade de personagens, histórias paralelas, cenários improváveis e uma dose cavalar de fantasia quase psicótica, ma acima de tudo fascinante. Este M&D é desses que a gente lê querendo curtir cada passo, entrando nos personagens e histórias, e desfrutando de tudo que ocorre, por mais absurdo que seja (e frequentemente é). Um humor afiado, uma rapidez de mudança de lugares de quem fala o quê para quem, e uma delícia de desenvolvimento narrativo. Afora a demarcação da divisa, (a “realidade histórica” do tema), há dezenas de histórias e personagens que entram na narrativa e a levam para muitos outros lugares, o que de certa forma responde a algumas das questões levantadas antes sobre a constituição da identidade: nós somos muito.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Propriedade Privada: Joachim Lafosse - Projeto Um filme quando valha a pena.


Propriedade Privada

Isabelle Huppert costuma sempre ser uma boa razão para ver um filme. Atuações precisas, num crescendo de intensidade que em algum momento transbordam para a insanidade a intensidade ou outra alteração visceral e incontrolada de personagens usualmente borderlines, fronteiriços entre a loucura e uma organização mais ou menos estruturada.

Neste filme, o atrativo inicial foi sua presença, mas logo me desencantei. Tive um ingrato deja-vu, e parecia que todas suas outras atuações estavam ali, condensadas mas, infelizmente, repetidas. Parecia que trechos de vários filmes se sobrepunham a este e eu me perguntava se todos os diretores a escolhem para papéis iguais ou se ela “huppertiza” todas suas interpretações.

Mas o filme segue. Um casal separado há 10 anos tem tensão constante, muito dela gerada pela ex esposa que espezinha o ex marido. Os filhos gêmeos são complementares um ao outro nas dinâmicas, um mais amoroso o outro mais incisivo. Um mais prático o outro mais tranqüilo. E são complementares à situação da família, acomodando-se como adultos jovens à comodidade da casa da mamãe.

Conflitos vão emergindo conforme esse equilíbrio sofrido, mas estável vai se desorganizando, por desejos novos e a entrada de um patético namorado da mãe. Conflitos inclusive entre os irmãos, sempre muito unidos. Conflito esse que acaba num empurrão bruto e numa queda. Terminamos o filme sem saber o resultado da queda (ponto para o filme!!!).

E terminamos o filme com uma cena de uma intensidade dramática impressionante: o pai e a mãe ajoelhados no chão, tomando os pedaços da mesa de vidro quebrada na queda do filho, sem falar, sem chorar, sem nada mais fazer senão aquilo que é a única coisa possível de ser feita quando tudo mais está roto: recolher os cacos.