quarta-feira, 30 de julho de 2014

O retrato de Dorian Gray – Projeto Um livro sempre.



O retrato de Dorian Gray

Oscar Wilde
Ed. Nova Cultural, 2003.

Ler um Clássico é um risco. Às vezes já sabemos o que vamos encontrar, de tão disseminado que o conteúdo foi; outras imaginávamos uma coisa e encontramos outra (para bem e para mal...); outras ainda nos perguntamos como aquela porcaria merece o status de clássico...

Dorian Gray é dessas histórias que todos ouvimos. O quadro que envelhece enquanto seu objeto permanece belo e jovem como quando foi pintado. Síntese possível, mas muito, MUITO aquém do texto. Pois ali há de fato essa questão, mas há uma linda discussão sobre a beleza e o tempo. Sobre o amor e a transitoriedade das coisas, pessoas, afetos e histórias.

O quadro no qual o retrato do jovem e belo e puro Dorian Gray foi pintado, recebe pela vida que leva a pessoa Dorian Gray as marcas das experiências, enquanto ele, o homem, por mais crueldades que realize, atos indecentes ou imorais, segue lindo, puro e imaculado: seu quadro é a expressão da própria consciência de si, separada dele mesmo como um outro.

E ele se relaciona com o mundo sem preocupar-se. Tem dinheiro e beleza e cinismo, sente-se inatingível, trata a todos com o desdém que a imortalidade daria ao Homem, ele não se modifica com a vida, só o quadro, ele não sofre com a vida, só o quadro, ele não vive, só o quadro.

Ele passa pelo mundo. Cavando cada vez mais um buraco no qual se perde, o buraco do não precisar preocupar-se nem temer nada nem ninguém. A cada ação seu retrato piora, fica mais cruel, seco, sangrento, como ficaria ele se seu corpo recebesse as marcas de sua própria vida. Uma imagem belíssima do que é o corpo, do que são as marcas, do que é a vida.

Claro que em, algum ponto isto necessitaria parar e, não é de estranhar-se o final que Wilde deu ao livro, existiria outro final possível? Desde os gregos a hybris, a desmedida, sempre caracteriza o homem e sempre termina do mesmo modo, com o único limite do qual não se escapa...

sábado, 26 de julho de 2014

Meu irmão é filho único - Projeto Um filme quando valha a pena



Meu irmão é filho único
Itália, 2007
Diretora: Daniele Luchetti

O título é esdrúxulo, mas naquele grau que ainda conseguimos arriscar: será que pode quem sabe com sorte ser um filme assistível???

E que bom que arriscamos, porque o filme é ótimo, divertido, leve, instigante e interessante. Um filmão. Sempre que um filme entra nesta categoria pode ser difícil dizer sobre o quê ele versa, e este não é diferente.

Há a briga constante e interminável dos dois irmãos; há o desconforto da família inteira com o caçula, que inicialmente seria padre, mas é questionador demais para seguir esse caminho; há a questão política, um dos irmãos é comunista e este caçula se decide pelo facismo, ressuscitando um movimento de veneração ao Duce; há o que em literatura se chama “romance de formaçao”, o processo para que aquele moleque perdido se torne um adulto... perdido; há o confronto dessas visões políticas, suas semelhanças e idiosincrasias (e idiotices...); As idiotices de cada partido político, os cretinismos, as regras e as situações constrangedoramente acéfalas; há o enredo amoroso com a namorada do irmão sendo cobiçada por este mesmo caçula teimoso. Em suma, uma quantidade razoável de enredos entrelaçados, sem que isso torne confuso ou chato o filme, muito pelo contrário, ele vai cada vez ficando mais rico e cativante.

E claro, há a divertidíssima forma italiana de educação e trato ente as pessoas, tapas na cabeça, gritos e ofensas distribuídas constantemente o que dão um charme todo especial a cada cena, sempre recheada do tempero local, um dialeto nortista italiano peculiarmente incompreensível...







quinta-feira, 24 de julho de 2014

Alpeis - Projeto Um filme quando valha a pena



Alpeis

(Grécia: 2011)
Diretor: Giorgos Lanthimos

E o que você faria, se enquanto chora a perda de alguém muito próximo, se aproximasse a enfermeira do hospital e lhe dissesse que poderia substituir sua filha que acabara de morrer, fazendo duas visitas de duas horas por semana? E que com o tempo isso seria até melhor que a relação que você tinha com ela? E que com o tempo sua dor se mitigaria e você passaria a gostar disso? E que usando as roupas dela, repetindo alguns de seus gestos e aprendendo com você como ela deveria agir, ela passa a fazer parte da sua vida, como se sua filha não tivesse morrido?

O cinema grego é especial pelas idéias surreais que promove na tela, este é mais um exemplo deste tipo de roteiro meio louco e esquisito, mas fantástico na provocação, que segue a mesma linha do recentíssimo Cópia fiel de Kiarostami, o que define a identidade? Porque sou eu e não o outro? Quem disse que eu não posso ser um outro para você?

O filme anda uns 25 minutos até que você comece a imaginar o que é que está ocorrendo ali, e você vai confirmar isso ainda um pouco mais tarde e eu acho essa suspensão de sentido maravilhosa: não se entrega fácil o que tem valor!! E é necessário acreditar na força do roteiro e dos atores para permitir-se não seguir o padrão barato de cinema...

São 4 os membros da equipe Alpes, que tem esse nome dado de uma forma séria (no filme) mas absolutamente absurda para nós que o vemos: porque os Alpes são tão maravilhosos que poderiam substituir qualquer outra montanha do mundo sem que isso trouxesse nenhum problema... mais ou menos a função dos 4 membros, que participam da vida de várias pessoas, substituindo entes queridos perdidos a pouco, tomando chá, lendo-lhes notícias, indo dançar, forjando cenas de adultério, fornicando... revivendo o que fora a vida com aquele morreu, impedindo que o vazio se faça notar, pela inserção de um substituto.

E o filme segue, e ao final, depois de várias reviravoltas importantes, ficamos com a dúvida central: quem é que está substituindo quem para quem?



segunda-feira, 21 de julho de 2014

Sob a pele - Projeto Um livro sempre



Sob a pele
Michel Faber .2006
Ed. Record

Fiquei tão impactado pelo filme que resolvi comprar o livro e pular a interminável fila de livros a serem lidos com este. Como era de esperar-se o primeiro momento foi de frustração: o livro não era tão legal como o filme. Conforme as paginas se seguiam, a coisa foi piorando, o livro não seguia a linha do filme (ou o contrário, seria mais adequado do ponto de vista cronológico); até chegar ao ponto definitivo: o livro não é a base do filme, este é um desdobramento do diretor, uma ressonância do livro, uma narrativa que tem alguns elementos do livro, mas só isso.

Quando cheguei aí, relaxei e aproveitei do que lia e, a coisa foi melhorando!! Na medida em que me deparava com uma linha de desenvolvimento da trama que não tinha nada, mas NADA a ver com a do filme, pude ter contato com uma outra história, e aí a coisa ficou boa.

A ficção científica é um gênero que por definição criará um universo que não existe. Pode ser totalmente irreal, ou tomar o nosso mundo e nele plantar elementos que não ocorrem a olho nu. Claro que podemos ser diretos ao refutar essa definição básica, dizendo que toda e qualquer expressão da arte é a construção do que não existe, de um universo próprio, o artístico, mas vamos deixar de lado só por enquanto esta questão mais bacana do que é a arte e a narrativa, e voltemos à ficção científica.

Como a FC não tema pretensão de ser real, pode trazer qualquer coisa para a história, que está valendo... opa!! Alto lá!!! Não é que qualquer coisa ta valendo, ou que pode tudo, mas pode tudo que faça sentido dentro do universo ficcional que se está criando naquela narrativa. Por isso se um marciano andar em São Paulo, está tudo bem, se (por exemplo) sua nave aterrisou no Ibirapuera. Senão fica aquela coisa meio sem sentido e razão de ser, aquilo que a gente chama de “uma porcaria”...

Isserley é uma fêmea. Seu trabalho é coletar machos. Machos que serão cevados, mortos e empacotados, transportados para seu planeta de origem. Para realizar seu trabalho passou por procedimentos cirúrgicos radicais que extirparam sua cauda, pelos, a fizeram bípede e implantaram seios perfeitos, que servem como chamariz para a caça. É auxiliada por outros membros de seu planeta que recolhem os machos de seu carro e os “processam” para viagem.

A história tem ainda um elemento do filho do dono da empresa para a qual todos eles trabalham, e um ou outro plot secundário. Mas o que vale a pena é o processo de autoconhecimento da protagonista. E não só de si como “pessoa”, mas dela como parte de um processo produtivo, da relação com os animais que ela caça, da surpresa na idéia que esses animais têm uma linguagem e por meio dela se expressam, faz da trama uma interessante provocação sobre a questão da identidade: quem somos nós, os que caçamos, os que pensamos ser inteligentes, os que nos sentimos a nata da nata da escala biológica.

E aí o livro fica mais valoroso. Pois a ficção científica tem sentido quando por meio da irrealidade do mundo que constrói, ilumina este nosso mundo, estes que somos nós, não pela discussão filosófica ou intelectual disso, mas pelos procedimentos que a arte e só ela consegue, de deslocar, descolar, ressoar, em nós e a partir de nós, sentidos diferentes do que já tínhamos.

Nesse sentido, o fim do livro é muito similar ao do filme, apontam para o descobrir-se, e ao ver o que há sob a pele, entender que não há mais nada a dizer, quando é só o vazio que se acha ali.

Para completar, uma capa primorosa que sobrepõe a estrada, elemento fundamental da história, e as costas, outro elemento chave, território do jogo de sedução da caça, e superfície que oculta/revela quem é quem.


quinta-feira, 17 de julho de 2014

Finn´s Hotel – Projeto Um livro Sempre



Finn´s Hotel – Projeto Um livro Sempre

James Joyce – Finn´s Hotel
Companhia das Letras, 2014
Tradução: Caetano Galindo.

Bom, então era uma vez um cara que resolveu que a literatura era uma corda e que ele iria esticar a corda até a corda agüentar e a corda esticou e estourou e os pedaços voaram paratodo lado e ele juntava ospedaç os dojei toqu e acha vaq eu seria mel horparaco ntar ashis tórias.

E o nome dele era James Joyce. Já escrevi da leitura do Ulysses aqui. Este Finn´s Hotel foi composto cronologicamente depois deste e antes do descomunal Finnegan´s Wake. E é importante situar porque o Wake é a explosão que falava ao início deste escrito, o Wake é o além da escrita e eu ainda não cheguei lá.

Mas o Finn´s é para todos nós, mortais desejosos de boa literatura. 10 histórias, curtas, algumas curtíssima, com as temáticas chave de toda mitologia: amor, sexo, morte, poder, território, identidade. Trabalhadas com aquele humor cínico e a beleza, ah, que beleza! Da narrativa que não é obvia nunca!!! Uma cena de amor é atravessada por muitas cenas, de amor, de fantasia, de desejo, de passados e possibilidades, em suma, uma história passa a ser a vida, na complexidade e volume torrencial de possibilidades abertas pelo fluxo do existir.

Joyce é conhecido por criar palavras, destruir palavras, mesclar palavras, palavrear palavras. Aqui ele ainda não é esse Joyce, mas aquele que contava histórias de um jeito intenso. Há as narrativas que apresentam personagens do Wake, que depois serão desenvolvidos, mas que são pequenas pérolas de beleza compactada. Não vou falar de cada uma, pois elas vão em direções múltiplas (e poderia ser diferente???) e ricas.

Por último, a tradução de Caetano Galindo que já havia vivificado o Ulysses e aqui mostra maestria. Traduzir é sempre um risco, quando se trata de literatura o risco cresce e quando é este tipo de literatura, vai ao paroxismo... Galindo dá conta do recado fazendo brasileirar-se o idioma joyceano, permitindo-nos entrar nos espaços voláteis, instáveis e abertos da transmutação, de palavras em vida.