sábado, 24 de março de 2012

Um método Perigoso – David Cronemberg


Projeto Um filme sempre que valha a pena:
Um método Perigoso – David Cronemberg

Cronemberg foi se sutilizando com o tempo. Daquela rudeza árida, áspera e contundente dos primeiros filmes, como Os filhos do medo (The Brood-1979) em que um terapeuta pouco ortodoxo vê aparecerem ataques feitos por mutantes; A mosca (Fly-1986) na que um cientista entra em contato com um ser de outra genética, transformando-se em algo gosmento não-humano; passando por Gêmeos, Mórbida semelhança (Dead Ringers-1988) no que dois gêmeos dividem uma vida, tentando ser um só e Crash-Estranhos Prazeres (Crash-1996) onde o amor entre um homem e o automóvel assume uma dimensão incontrolável, ele foi lentamente decantando sua intenção de chocar, sem perder o intuito maior, provocar um olhar sobre o outro, o lidar com o outro, o lidar com a diferença, o ser diferente.

Então quando em 2005 ele lança Marcas da Violência (A history of violence), que conta a história de um pacato cidadão que tem seu passado desencoberto e vê-se atravessado por ações, desejos, medos e fantasias nada pueris, assumindo sua violência e agressividade e sendo por meio dela re-conhecido no mundo de sua relações familiares e sociais, não estava mudando de foco ou rumo, apenas deixava de lado gosmas, melecas, sangues e demais elementos fantásticos de declaração de outros territórios. Ele manteve esse novo rumo no Senhores do Crime (Eastern Promisses-2007), fazendo com que o amor e desejo entre um policial disfarçado de aspirante à máfia russa em Londres, e uma enfermeira “do bem”, fossem postergados até a impossibilidade: os territórios se mesclavam, mas nunca se fundiam, cada um acabava onde sempre esteve.

Agora chega até nós o espetacular Um método perigoso (A Dangerous Method-2011), pérola que olha para o início da psicanálise, na Viena do início do século XX, mas, principalmente, na Zurique de Jung. Há evidentemente um interesse anedótico nas vidas privadas desses dois iniciadores, algo do tipo “olha como ele era com a esposa”. Mas isto não tem relevância. O central é o tratamento de uma paciente, posteriormente amante e colega de profissão por parte de Jung.

Não pelo ter uma amante, estaríamos na sarjeta comum do homem que pula a cerca. Mas por ser com essa amante que ele se permite entrar em contato e assumir posições no relacionamento sexual e no assumir do desejo não só ausentes como descabidas no seu angelical casamento. Jung ali descobre um outro território, tema caro a Cronemberg, e ao descobrir o outro território se descobre outro, nesse outro território.

Como todo criador, Freud aparece com algumas idiossincrasias que, vistas hoje são patéticas. Imaginar que limitar à sexualidade os motores da psique humana para com isso estabelecer. Ali já se mostra o que sempre se aponta como a principal diferença entre ele e Jung, a abertura deste para uma maior diversidade de vetores de forças psíquicas, mais criadoras, mais poéticas.

No fim das contas, de modo sutil, mas presente, um retrato do criador da psicanálise, de seu principal discípulo e depois desafeto, de uma época na que se acreditava na possibilidade de fazer ciência romanticamente, e mais que tudo, do lado sombrio e arriscado, sempre presente, mesmo que negado dos que acompanhamos, estimulamos e somos nós e outros, com o outro.




domingo, 18 de março de 2012

O dia em que eu não nasci - Projeto Um filme sempre que valha a pena


O Dia em que eu não nasci

Filme magnífico, imperdível e cheio de qualidades raras no cinema atual. Uma pérola das que nos deixam feliz de poder encontrar tantas coisas boas num filme só.

A argentina deve ter feito seu expurgo e sua catarse em relação à ditadura e aos desaparecidos, tamanha quantidade de filmes que foram feitos sobre o período, logo após o fim da ditadura e os processos investigativos que ainda acontecem por lá. Ao contrário de nós brasileiros, que também tivemos nossa ditadura, desaparecidos, torturados e demais crimes, mas acobertamos tudo com uma anistia covarde, los hermanos tiveram o peito de iniciar, sempre com a dificuldade de desvelar o passado, pelos meandros do poder sempre imundo, o que se deu no seu passado.

E fizeram isso tantas vezes que hoje há espaço para assistirmos a um filme como este. Maria é uma nadadora alemã, por um acaso vem parar em Buenos Aires, e uma sequencia de eventos a levará a descobrir quem de fato é, o que ocorreu na sua vida, como chegou a ser aquilo que imaginava ser sua verdadeira identidade.

O filme constrói com uma fotografia saturada sempre, um clima de tensão, expectativa e descoberta passo a passo, Maria descobre que foi filha de argentinos e não de alemães, que seus pais foram torturados e ela levada pelos que trabalhavam com eles na Argentina, sem a chance de ficar com sua família. Não conto mais nada, isto é só para situar uma linha do roteiro.

Há entretanto uma cena absolutamente maravilhosa, Maria leva um namoradinho para servir de tradutor, e fazer as perguntas e respostas para a família de sua mãe, que ela descobriu estar em Bs As ainda. E a tia/madrinha lhe pergunta coisas e vice versa, e o namorado faz as traduções, e o namorado é um policial, filho de outro policial possivelmente envolvido nos crimes da ditadura. Maria mais tarde lhe perguntará se ele nunca quis saber o que seu pai fizera naqueles anos, e o filho responde “Não, não desejo saber de algo que possivelmente me faria odiá-lo”

E esta é uma das leituras do filme, que tempo terá de passar, e quantos segredos escondidos necessitarão apodrecer até que consigamos assumir uma identidade, destruída por processos de expurgo, morte e tortura. Socialmente perdeu-se uma grande quantidade de pessoas nos processos de ditadura, mas mais que isso, perderam-se forças, idéias, concepções, que faziam parte de identidades nacionais, grupais e pessoais. Aos sumir com as pessoas, rompem-se canis identitários, deixamos de ser, como povo, aquilo que éramos, e não somos mais nada, somos algo perdido, somos algo a buscar, construir identidades de frangalhos e restos, esparsos, perdidos, incompletos.



sábado, 17 de março de 2012


Terras de sangue e mel – Angelina Jolie

Este é dos filmes que só chegará ao Brasil, se chegar, por ter como diretora (sim, diretora) Angelina Jolie. Para quem achava que alem de linda ela era apenas atriz de filmes usualmente ruins, temos agora a chance de ver sua atuação atrás das câmaras e, podemos dizer de cara, ela se saiu bastante bem para ser o primeiro trabalho.

A história não é fácil, Bósnia 1992, estoura a guerra nos Bálcãs. Mesmo tendo-a acompanhado na época, não entendia o que acontecia ali, e sigo sem ter um entendimento muito claro. Sérvios contra croatas, a Iugoslávia comandada pelo ditador Tito se desfacelando e conflitos étnicos e religiosos eclodindo, muçulmanos sendo massacrados e a comunidade ocidental assistindo impassível ao massacre, limpeza étnica e violência sistemática contra milhares de pessoas.

Como fio condutor Jolie cria uma par romântico Romeu-Julieta, ele Sérvio e do exército, filho de um alto comandante, ela uma muçulmana. A impossibilidade do amor vai se complicando pelas tentativas pueris dele salvá-la, e pela impossibilidade de negar uma guerra da qual ambos fazem parte e, de lados peremptóriamente opostos.

Ler Romeu e Julieta é um deleite, mas depois de tantas leituras e releituras perde-se a tensão do amor impossível. Aqui esta tensão é retomada, e lindamente aponta para a impossibilidade de paz num país dividido, local e global, pessoal e coletivo.

Não se espere uma obra prima, é o primeiro trabalho, mas tem de ser corajoso para estrear chutando o pau da barraca, e cutucando a indiferença e abandono que o ocidente teve para com os muçulmanos massacrados. Não gratuitamente ela foi escolhida embaixadora da ONU, não por isso representar algo, porque é apenas um título, mas aponta para a posição que ela tem no mundo, e este filme é mais um passo nessa direção. Algumas bobagens americanóides, alguns momentos dispensáveis, mas no geral um filme merecedor de ser visto com carinho



terça-feira, 13 de março de 2012

Nova Antologia do Conto Russo


Nova antologia do conto russo

Uma antologia é um risco. Você junta 40 autores russos, seleciona contos que ou não foram publicados antes, ou são muito representativos, ou merecem vir a publico, e dá ao leitor uma oportunidade única de percorrer 200 anos de narrativas curtas russas. Não preciso dizer que a variedade tem seu custo. Alguns dos contos são muito bons, outros médios e outros fraquinhos. Não pretendo falar de cada um, porque seriam 40 comentários, mas queria aproveitar o conjunto da experiência da leitura.

Porque temos o primeiro conto, escrito há 200 anos, e ele tem uma puerilidade narrativa tal, que parece uma criança de 8 anos contando uma história para o primo menor de 4 anos, os eventos se encaixam como uma luva, não há margem para outros sentidos e sabemos o final da história assim que os personagens se apresentam. O interessante é pensar que o contar histórias teve esse momento. Narrar já foi contar histórias de um modo que hoje é óbvio e não estimula a imaginação e a abertura. E infelizmente não posso dizer que esse momento acabou, porque seja nos filmes roliudianos, nos livros cretino-juvenis (me recuso a chamar de infanto juvenis, o que seria uma afronta aos livros decentes escritos para crianças e jovens) ou nos programas televisivos correntes, temos essa mesma narrativa óbvia, fechada a outros sentidos que aqueles dados pela intenção do autor. Obras fechadas.

Este é um livro que, se eu estivesse dando aula para psicólogos, pedagogos ou qualquer profissional que trabalhe com gente, iria propor como leitura obrigatória durante um semestre apenas este livro, porque se há algo que é fundamental aprendermos, é que nunca há apenas uma história, uma forma de contar histórias, uma solução para a história trazida.

E há mais 39 outros contos e autores, alguns consagrados e conhecidos do grande publico, outros traduzidos pela primeira vez no Brasil. Há os que desenvolvem histórias com uma fluidez impressionante, outros que rompem com nossas expectativas e imaginam temas novos, instigantes, radicais. Assim também são as narrativas e a variedade delas, até o começo do século XX as acompanhamos bem, com a virada do século as experimentações se seguem, algumas mais felizes que outras. Algumas abrindo possibilidades de leitura, compreensão e descoberta, outras só experimentações, só isso, vazias e estéreis como parte da arte do século passado foi.

Mas um livro imperdível, pela abrangência, abertura e generosidade de opções!!