segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Juventude - Projeto Um filme quando valha à pena.



Juventude

Paolo Sorrentino
Itália-França-Suíça-Reino Unido
2015

De tempos em tempos acontece de assistir um filme que me obriga a escrever, indicar, compartilhar, sugerir, dizer dele e tentar que mais pessoas possam ver. Se há alguma maravilha em garimpar as esquisitices do cinema, é eventualmente deparar-se com uma jóia como esta, uma pérola que nos faz relembrar qual o sentido da arte e por conseguinte do cinema: tocar-nos, transformar-nos, levar-nos aonde nunca havíamos estado antes.

É muito raro ver um filme que não tem nenhuma cena desnecessária, nenhuma fala supérflua, nada acontecendo sem um propósito certeiro e ao mesmo tempo sem ser forçado ou artificial. Este é um destes raros exemplos. Cada tomada conta o que necessitamos saber, sem excessos e sem falhas, um ritmo ágil sem a necessidade do frenesi que muitas vezes esconde a falta de conteúdo. Cada imagem parece ter sido estudada como um quadro, uma pintura ou uma instalação: a luz, as cores, o enquadramento, a posição dos personagens, o fundo, figurinos e cenário, música, diálogos e silêncios, olhares, insinuações. A cada cena um passo mais na construção de uma narrativa emocional, comovente sem cair na pieguice ou na apelação tão costumeira. Chora-se, de verdade.

Filme que se preza não conta uma história, conta várias, muitas vezes entrelaçadas mas, nos melhores casos, sobrepostas como palimpsestos de sentido e significado, de ideias, filosofia, comentários e sentimentos, interações entre personagens e destinos. Disto tudo fala este filme.

E se não vou dizer muito do que ocorre, é porque ocorrem muitas coisas e, ao mesmo tempo, muito poucas: é como aquela sensação dos momentos importantes, nos que entende-se algo fundamental, que muda muito a posição na vida, mas se vamos contar, parece que faltam palavras para dizer com exatidão a dimensão do ocorrido, a isso se chama epifania, também conhecida como iluminação. O filme é, mais que tudo, iluminado.

E parte da sua força e brilho está exatamente em fazer a tensão entre a morte, que ronda o tempo todo a narrativa, e a vida, que explode a todo momento na magnitude de uma natureza generosa e uma humanidade presente.
Michael Cain divide o protagonismo com Harvey Keitel, ambos esplendorosos, e a eles se soma uma bela quantidade heterogênea de atores variados, compondo um mosaico complexo, volátil e rico de interações. Alguns atores são melhores, outros nem tanto, alguns muito jovens, outros trazem claramente as marcas do que o tempo faz com as pessoas.

Suponho que o diretor Paolo Sorrentino, do qual A grande Beleza já havia sido indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro dure muito, mas se tivesse morrido depois deste filme diríamos que foi seu mais belo testamento, algo por sinal que atravessa o filme todo, o que deixamos como legado, o que nos afirma como indivíduos e ações, o que nos mantém vivos.

Isto nos mantém, vivos.






quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Decálogo – 1º Mandamento - Projeto Um filme quando valha a pena



Decálogo – 1º Mandamento - 
 Amarás a deus sobre todas as coisas


Krzysztof Kieslowski
Polônia. 1990

Houve um tempo em que se fazia cinema com o que se tinha, e em alguns lugares isso significava ter muito pouco. Na Polônia pós queda do muro de Berlim isso era menos ainda. Equipamento ruim, áudio ruim, fotografia precária, locações “naturalistas”, o que significa dizer, o que dava prá fazer, onde e como desse.

Nesse contexto tinha-se de investir na história e ponto final. E a narrativa tinha de sustentar-se e dizer a que vinha por si, sem efeitos, sem recursos, sem nada, a não ser um diretor excepcional, um roteiro brilhantemente articulado e dois atores que fazem com que todo o resto deixe de ter importância.

Quando Kieslowski morreu foi-se um grande diretor, carreira merecedora de toda admiração, fosse por ter conseguido fazer arte com muito pouco (como na época deste Decálogo) fosse depois, já emigrado para a França, onde fez os maravilhosos A dupla vida de Veronique e a fantástica trilogia das cores ( A liberdade é Azul, A fraternidade é Branca e a Igualdade é Vermelha). Foi-se um grande diretor que conseguia algo cada vez mais raro e difícil, pensar o cinema fazendo-o, sem blá-blá-blá, sem masturbação mental, sem discursinhos apologéticos.

Então vamos lá. Moisés trouxe do Sinai as tábuas com os 10 mandamentos, Kieslowski resolve usar o mote do decálogo para filmar não uma reprodução ou um filme de época, mas uma atualização E ao mesmo tempo uma crítica E ao mesmo tempo uma subversão contemporânea disso.

Papai é matemático, ateu convicto e crente no poder do cálculo da lógica e dos computadores, que respondem tudo que ele quer saber. Pawel é o filho, fofo, lindo de olhos grandes, interessado e ainda em dúvida se existe algo além da vã filosofia no reino humano. Perguntam ao computador qual o peso que o gelo do rio congelado suportaria, e o resultado dá com ampla margem de segurança a certeza que Pawel pode patinar no gelo com os presente de natal que encontrou antecipadamente.

Não se critica o pai ou o filho pelo agnosticismo ou pela crença na tecnologia. Não se apresenta a crença em deus ou no diabo como algo necessário. Sem apologias ou recriminações somos lançados ao sofrimento da perda do que mais se ama, o filho, a lógica, a certeza. E o melhor, este é apenas o primeiro dos mandamentos, e ele nos diz para amar a deus acima de todas as coisas. Nada como os paradoxos...










quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Mudança - Projeto Um livro sempre



Mudança


Mo Yan
Cosac Naif 2013

Ele ganhou o Nobel de literatura em 2012, e muitos sugeriram que o prêmio fora dado mais por razões políticas que literárias. Não sei o quanto há de maldade nessa suposição porque desconheço o restante de sua obra, mas se for tomar este Mudança como parâmetro a ideia não deixa de ter um certo sentido.

A escrita é fluída. Como alguém te contando uma historia oralmente, o que não tem nada de ruim. A história é ao mesmo tempo pessoal, do moleque que sai da uma aldeia nos cafundós de lugar nenhum, para tornar-se escritor de renome internacional. Ao mesmo tempo é a história do país que sobrevivendo à morte de Mao, passa por gigantescas e impactantes mudanças.

São as mudanças que nós, daqui de fora, acompanhamos nos últimos 20-30 anos, a entrada disfarçada de procedimentos capitalistas num sistema socialista, que cada vez mais deixa de ser socialista e passa apenas a ser uma ditadura com feições de esquerda.

 Há um certo estranhamento, vemos de relance um mundo que parece muito distante. Relações sociais guiadas pelo posto dos participantes... ops, mas isto é conhecido; casamentos arranjados pelos benefícios almejados... ops, isto também é conhecido; bem, há um ar diferente, uma diferença que estes exemplos não abarcam. Uma diferença que tem a ver com um passado, arrancado das raízes pelo progresso, ou pela noção de progresso.

Há o estranhamento de um outro mundo sendo aberto para os estrangeiros. Na literatura isso é um trunfo: criar um mundo que não é o seu, e convidá-lo a entrar, entregando-lhe uma visão de mundo que até então você não possuía.

Um autor a ser acompanhado, para ver se o premio foi merecido ou foi um ato político. Ou marcadamente politico, para ser mais preciso.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Encontros e desencontros (Lost in translation) - Projeto Um filme quando valha à pena



Encontros e desencontros
(Lost in translation)

Sophia Coppola
EUA: 2003


O que se perde numa tradução? Como dizer em outra língua algo que lhe é tão pessoal, tão próprio que parece não ter sentido senão na sua língua? Esta questão básica do ato de traduzir, estudada desde que escrever se tornou uma possibilidade, não tem resposta final. Os italianos tem uma expressão, repetida à exaustão por qualquer tradutor ou crítico literário: traduttore, traittore. Traduzir é trair. Trair o original, trair o sentido inicial, trair o leitor que acha estar tendo contato com um autor, quando na verdade é com o tradutor desse autor. Muitas traições...

Não sei qual é o número de vezes que assisti este filme, é de longe o melhor filme de Sophie Coppola, que iniciou com As virgens suicidas, uma crítica ácida ao American way of life (que no filme vira american way of death...) e depois teve entre outros o bom Maria Antonieta, o patético Somewhere e o fraquíssimo Bling Ring, uma cineasta irregular que parece ainda não ter definido muito a que veio.

Mas este Lost in Translation é uma pérola. Pérola de delicadeza, sutilezas, nuanças e indicações leves. Pérola por trazer Bill Murray, um ator que nunca me pareceu ter o menor conteúdo, tendo feito dezenas de filmecos bobos e comerciais, num papel que lhe cai como uma luva, desde a primeira vez eu me perguntei: como nunca ninguém percebeu que este cara é um ator dramático, e não cômico? Pérola por detalhes, sinais, insinuações e mais delicadezas.

Charlotte terminou sua faculdade de filosofia e acompanha o marido fotografo ao Japão, onde este vai trabalhar um tempo. Está entediada e, mais que isso, perdida. Na vida, na cidade, na língua, no casamento, na existência que não tem nenhum sentido. Bob Harris é um ator já na curva do ocaso, contratado para fazer um comercial de whisky no Japão, participar das filmagens, produção, divulgação etc. Seu casamento está também na curva do ocaso, seus filhos o estranham e ele acha a vida um saco.

Ambos se encontrarão no hotel, e sem que nada ocorra entre eles, tudo os une num lugar especial, o de reconhecerem-se cúmplices numa vida que não lhes dá sentido, prazer ou perspectiva. Solidão, tristeza, apatia, desilusão. Estão perdidos e a ida a um outro território estrangeiro, no extremo do que isso pode significar, a inserção em outra cultura, língua e dinâmica de vida, explicita o que perderam, lost in translation.

Há achados muito legais. A trilha sonora toda é parte indissociável do filme. O que se está dizendo nas letras indica o que se passa com aquele personagem naquele momento, naquela situação, naquela passagem do filme, uma vinculação orgânica que raramente vejo no cinema, onde a música é usualmente música de fundo, para preencher um espaço, como um abajur ou um quadro na parede, que não dizem nada além de estarem preenchendo um espaço.

Quando o filme foi lançado houve críticas de comunidades asiáticas que se sentiram ofendidas pelo modo como se retratou o Japão e os japoneses. É curioso, porque se alguém deveria se sentir ofendido deveriam ser os norte-americanos, apresentados como incapazes de adaptar-se a qualquer diferença de rotina, organização e dinâmica social. A personagem gringa que está lá para divulgar seu novo filme merece o framboesa de ouro pelo personagem mais imbecil do ano...

Para terminar, há uma cena antológica, porque tudo termina e esta relação tão especial, por inqualificável, também necessitaria chagar a um fim, Harris necessita (ou resigna-se) a voltar a seu país de origem. Ocorre no saguão do hotel aquela despedida básica, formal, vazia, despida de todo o valor que havia sido construído até então. Ele entra no carro e no caminho pede para descer um pouco, alcança Charlotte e aí acontece a pérola final do filme. Nada de discursos piegas ou emoções fáceis. Palavras ditas no ouvido que apenas Charlotte ouviu e que nós podemos cada um imaginar o que quisermos, traduzindo-nos no que fala e no que ouve aquilo que atravessa o filme todo para deslumbrantemente chegar ao apogeu ali, na rua, num abraço presente e tocante. Lost in Translation.


























quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Palmeiras Selvagens - Projeto Um livro Sempre



Palmeiras Selvagens (1939)


William Faulkner
Cosac Naif 2009

Há momentos na literatura que nos perguntamos como o autor consegue, usando os recursos disponíveis para qualquer escritor, escalar um patamar novo, diferente, mais poético, mais radical. Faulkner já o fizera em seu O som e a fúria, levando ao paroxismo fazer da escrita não um retrato do mundo, mas a construção de um outro mundo, o das letras, o da arte, o da sensibilidade.

E passados poucos anos, ele cria não um, mas dois mundos novos. Palmeiras selvagens é a história do médico apaixonado que abandona tudo para ficar com uma esposa e mãe que também larga tudo para ficar com ele. E nos abandonos fazem um pacto de não abandonarem o amor, não se deixarem matar pela rotina e institucionalização de um casamento, de uma metódica repetição das vidas sem sentido.

O velho é a história de um condenado que por causa de uma inundação consegue um barco e atravessa uma provação para chegar ao lugar de onde saíra, encontrando e salvando uma parturiente no caminho e vivendo histórias inacreditáveis.

As histórias não tem aparentemente um diálogo entre si, os personagens não se encontram e não participam do mesmo tempo-espaço. São por isso, dois mundos literários distintos. Entretanto, e esta é a questão mais bela do livro, as histórias intercaladas no livro tangenciam temas, nunca explicitando-os, nunca escancarando essa sutil ligação, essa delicada articulação. Morte, sexo, desejo, identidade, valores, filhos, liberdade. Temas que se desenvolvem numa história, e que de outra forma, com outro enfoque, a partir de outra intenção, serão tocados, organizados, lapidados na outra. Nunca numa troca, nunca numa conexão, mas por meio de uma leve insinuação, fazendo uma quase imperceptível iluminação mútua.

Delícia de livro em mais uma excelente edição da Cosac Naif. Imperdível!!