terça-feira, 20 de novembro de 2012

E agora aonde vamos? - Projeto Um filme quando valha a pena



E agora, aonde vamos?
(FRA/EGI/Líbano/ITA.2011)
Diretora: Nadine Labaki

Quando um filme inicia com um grupo de mulheres de preto caminhando lentamente, e nos passos vai-se formando um ritmo, e o ritmo leva a uma coreografia simples, mas muito significativa, você pode esperar qualquer coisa de bom, porque ali está um início que afirma uma visão, um modo de entender, um modo de poeticamente fazer a leitura e a implicação da delicadeza e da atenção no contar uma história.

No século 4 AC Aristófanes escreveu Lisístrata. Como resumão, a mulherada grega cansada das perdas dos homens que iam para a guerra e esta não terminava nunca, resolveu fazer o que as mulheres deviam fazer sempre: assumir o controle, porque homem no comando dá problema, vide o mundo onde vivemos...

E aquele momento se resolvia cenicamente de modo irreverente e caustico, só para lembrar, cidadão era o homem livre todo o resto, o que incluía a ampla gama de escravos, crianças velhos gagás e mulheres, não contava. Então não deixa de ter uma radicalidade extrema Aristófanes colocar a mulher como pivô capaz de transformar uma situação que os manés não conseguiam, e nem conseguem.

Passam-se milênios e estamos com mais um filme a colocar as coisas como elas são: uma aldeia é compartilhada por muçulmanos e cristãos, que convivem bastante bem. Quando um conflito emerge no âmbito nacional, os homens da aldeia se ouriçam para brigar cada um com seu vizinho.

E cabe à mulherada encontrar soluções inusitadas e irreverentes (para dizer o mínimo) que evitem que o conflito recrudesça e eles não se matem (porque de uma hora para outra parece que só isso importa na vida de um homem...). Uma das últimas soluções é exatamente trocar de crença religiosa: já que todos os cristãos são ruins, torno-me cristã, vais me machucar meu filho? Já que os muçulmanos não prestam, passo a amar Alá, e aí, vou apanhar por isso marido?

E o filme termina com um cortejo fúnebre, e nessa confusão de religiões e de quem é quem, e do que somos, um do grupo pergunta ao chegar ao cemitério, dividido pela estradinha da vila com os cristãos enterrados de um lado e os muçulmanos do outro: E agora, aonde vamos?

Imperdível!





segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Adeus minha Rainha - Projeto Um filme quando valha a pena



Les adieux à la reine
 (França: 2012)
Diretor: Benoît Jacquot

Na última frase do filme está a chave para seu entendimento, e adoro filmes que nos prendem, mas que apenas se abrem no fim, deixando uma trilha de possibilidades durante todo o trajeto. Uma serviçal apaixonada por sua rainha, apaixonada pela idéia da realeza, pela figura, pela pessoa, pelo corpo, naquela paixão platônica, idealizada, impossível e por isso mesmo intensa.

Uma rainha fútil (haverá rainhas que não o sejam?) que joga o tempo todo sem vincular-se a ninguém que não aquela que ama, todo o resto é passageiro e na verdade sem muita importância, tudo e todos existem para atendê-la.

A rainha é Maria Antonieta e são os 4 últimos dias de sua vida, a Bastilha será tomada e os rumores intensificados. Um tema tantas vezes retratado que pensaríamos não ser possível dizer algo mais sobre ele. Sempre é possível!! Aqui teremos as desventuras e anseios da leitora da rainha, a apaixonada, a zero à esquerda da corte.

E é essa relação, da serviçal Laborde que adora sua patroa, que a endeusa, ama, deseja, mas não é reconhecida. Como espelho temos a outra mulher essencial do filme, a condessa de Polignac, amada e desejada pela rainha.

Num jogo intrincado de desejos, sempre assimétricos, essas três mulheres, interpretadas por ter atrizes lindíssimas, chegarão a um ponto no que à serviçal será pedido/exigido assumir um papel central, a de salvadora da amante da rainha, o lugar que ela desejaria sempre ter estado.

Não conto a frase final, merece ser vista e degustada!









sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Dez minutos para o paraíso - Projeto Um filme quando valha a pena



Dez minutos para o paraíso
(Dinamarca.2012)
Diretor: Mads Matthiesen

Sensacional filme sobre o improvável. Dennis é um fisiculturista, daquelas massas de músculos que imaginamos serem habitadas por neandertais modernos, entretanto é um doce de pessoa, tímido, contido, um fofo. Por sinal o titulo em inglês do filme capta bem o espírito do personagem, Teddy Bear, ele é um urso, fofo.

Vai à Tailândia seguindo as indicações de um tio, que importou esposa de lá. Evidentemente as esposas disponíveis são prostitutas e Dennis não se entrosa com nenhuma. Mas conhece a dona de uma academia e com ela, que é uma mulher comum, consegue desenvolver um afeto genuíno.

Ela migra para a Dinamarca, onde a mãe ultra possessiva de Dennis não aceita a situação e tenta até o fim evitar que este cresça e siga sua vida.

Contado assim o filme é uma história de amor. E é efetivamente. Mas a delicadeza e a surpresa dos personagens e situações faz com que o filme fique acima da media e do registro usual. Nem tudo ou todos parecem o que são, e são o que parecem. Dennis não se integra com as meninas tailandesas, mas ao chegar à academia parece ter entrado em seu habitat, em algum momento pensamos se ele seria gay, mas não é isso, ele não se encaixa, e o filme é também e principalmente sobre essa busca do criar um espaço e relações nos quais se possa sentir “em casa”. Sobre qual é o seu lugar no mundo.





domingo, 11 de novembro de 2012

Do outro lado - Fatih Akin. Projeto Um filme quando valha à pena



Do outro Lado
(TUR/AL.2010)
Diretor: Fatih Akin

Um velho escroto vai a um puteiro, descobre que a moça é turca e lhe propoe morar e transar exclusivamente com ele, que lhe pagaria os 3 mil euros que levantava no serviço sexual. “Como?” pergunta ela, ao que ele responde que tem sua aposentadoria, uns terrenos na Turquia, e o filho que é professor em uma universidade alemã “complementaria” o que fosse necessário.

Ela topa, o velho que é um escroto de marca maior, acaba por matar Yeter, sua acompanhante oficial, e vai em cana. Seu filho desgostoso parte para a Turquia, tentando achar a filha de Yeter a quem deseja auxiliar, pagando-lhe os estudos. Acaba por comprar uma livraria especializada em obras em alemão no centro de Istambul.

Ele nunca encontrará a filha, revolucionária radical que acaba fugindo para a Alemanha quando ele está na Turquia, envolvendo-se com uma alemã e ....

O filme é todo especular, situações que se espelham, nunca da mesma forma, mas sempre iluminando “o outro lado”, a outra face da moeda, que é a mesma moeda, mas é também outra moeda, são situações que se aproximam, mas nunca são iguais, o que é um modo muito delicado de dizer das diferenças culturais, sem marcar valores, mas sem omitir diferenças, e é pela diferença que poderá ocorrer o reconhecimento da identidade, não a que se imaginava ter, mas aquela única, forjada na intensidade da vida vivida na relação última, mas esta parte eu não posso contar, veja!

Eu adoraria poder recomendar os outros filmes do diretor Fatih Akin, mas infelizmente ele é bem irregular, seu Contra a Parede é apenas médio, e o filme posterior a Do outro lado, é o ruim Soul Kitchen, então não se anime muito na filmografia, infelizmente...







sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Bruno Schulz - Ficção Completa - Projeto Um livro sempre



Bruno Schulz
Ficção completa
CosacNaif, 2012

Há os clássicos. Alguns o são porque com eles nasce uma linha condutora, outros porque mandam que sejam clássicos, outros ainda porque são irrecusavelmente maravilhosos e arrebatadores e outros ainda porque de tão chatos ganham um status de especiais, quando o deveriam ter de ilegíveis.

E há os que não são clássicos, autores e livros perdidos na multidão, no oceano de textos e escritos, que tanto poderiam passar desapercebidos que ninguém, ou quase ninguém, ou muito poucos os conhecem. Mas estão ali, na espreita e na espera, que algum dia tomemos conhecimento deles e os achemos. Desfazendo a injustiça de não serem divulgados pela crítica.

E então, “descobri” Bruno Schulz. As aspas são mais que necessárias porque ele sempre esteve ali, eu é que na ignorância não sabia que ele esperava. E é dessas descobertas que a gente fica maravilhado, porque não é um autor, mas um mundo que se abre, descortinando não histórias e situações, mas universos e principalmente formas de ver, ler e estar no universo.

Transcrevo as primeiras linhas de seu Lojas de Canela:
Em julho meu pai viajava para uma estação de águas e me deixava entregue, com minha mãe e meu irmão mais velho, à voragem dos dias de verão, estonteantes e brancos de calor. Embriagados com a luz, folheávamos esse grande livro das férias, cujas folhas todas ardiam de tanto fulgor e tinham no fundo a polpa das peras dourada, doce de desmaiar.
Nas manhãs luminosas, Adela voltava do fogo do dia incandescente como Pomona, despejando de sua cesta a beleza colorida do sol – as cerejas brilhantes, cheias de água sob a casca transparente (...)

Não sei você, mas eu fiquei estonteado com a profusão de cores, a intensidade da luz, a violência dos odores e sabores vivos, e a excelência dos adjetivos, num excesso notável tanto pelo uso como pela riqueza. E daí são linhas e mais linhas, degustadas na exuberância cuidadosa de uma narrativa rica em detalhes, nuances e sinais: cada elemento parece ser importante e dele derivam novos movimentos nas histórias.

E as histórias! Porque não são apenas narrativas, mas verdadeiras criações de mundos ficcionais intensos, desvairados até, que nos arrancam do chão firme e nos lançam na fantasia simbólica de sentidos abertos: somos arrastados para fora do âmbito da racionalidade e na fantasia do improvável entendemos que a arte é isto, fazer do impossível o território da vida, para viver a abertura no cotidiano, alargando as brechas do possível até sairmos do conhecido, até estarmos alem do que conseguiríamos pensar mas que, apesar disso, conseguimos entender, desfrutar e apaixonar-nos.

Então, se a estante dos clássicos serve para algo, que seja para acolher este gigante pouco divulgado, mas gigante, impreterivelmente gigante.