Decálogo – 1º
Mandamento -
Amarás a deus sobre todas as coisas
Krzysztof Kieslowski
Polônia. 1990
Houve um tempo em que se fazia cinema com o que se tinha, e
em alguns lugares isso significava ter muito pouco. Na Polônia pós queda do
muro de Berlim isso era menos ainda. Equipamento ruim, áudio ruim, fotografia
precária, locações “naturalistas”, o que significa dizer, o que dava prá fazer,
onde e como desse.
Nesse contexto tinha-se de investir na história e ponto
final. E a narrativa tinha de sustentar-se e dizer a que vinha por si, sem
efeitos, sem recursos, sem nada, a não ser um diretor excepcional, um roteiro
brilhantemente articulado e dois atores que fazem com que todo o resto deixe de
ter importância.
Quando Kieslowski morreu foi-se um grande diretor, carreira
merecedora de toda admiração, fosse por ter conseguido fazer arte com muito pouco
(como na época deste Decálogo) fosse depois, já emigrado para a França, onde
fez os maravilhosos A dupla vida de Veronique e a fantástica trilogia das cores
( A liberdade é Azul, A fraternidade é Branca e a Igualdade é Vermelha). Foi-se
um grande diretor que conseguia algo cada vez mais raro e difícil, pensar o
cinema fazendo-o, sem blá-blá-blá, sem masturbação mental, sem discursinhos
apologéticos.
Então vamos lá. Moisés trouxe do Sinai as tábuas com os 10
mandamentos, Kieslowski resolve usar o mote do decálogo para filmar não uma reprodução
ou um filme de época, mas uma atualização E ao mesmo tempo uma crítica E ao
mesmo tempo uma subversão contemporânea disso.
Papai é matemático, ateu convicto e crente no poder do
cálculo da lógica e dos computadores, que respondem tudo que ele quer saber.
Pawel é o filho, fofo, lindo de olhos grandes, interessado e ainda em dúvida se
existe algo além da vã filosofia no reino humano. Perguntam ao computador qual
o peso que o gelo do rio congelado suportaria, e o resultado dá com ampla
margem de segurança a certeza que Pawel pode patinar no gelo com os presente de
natal que encontrou antecipadamente.
Não se critica o pai ou o filho pelo agnosticismo ou pela
crença na tecnologia. Não se apresenta a crença em deus ou no diabo como algo
necessário. Sem apologias ou recriminações somos lançados ao sofrimento da
perda do que mais se ama, o filho, a lógica, a certeza. E o melhor, este é
apenas o primeiro dos mandamentos, e ele nos diz para amar a deus acima de
todas as coisas. Nada como os paradoxos...