quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Fiódor Dostoievsky - Crime e Castigo

Crime e Castigo

Ler um clássico é encarar algumas dificuldades, porque sempre há uma quantidade de expectativas que temos de que aquilo a ser lido será bom, e muita vezes, muito bom. Ler Dostoievsky leva ao extremo essa dificuldade.

Não porque literatura russa seja mais difícil, provavelmente seja questão de gosto, eu adoro o universo e a situações do lado de lá. São tão diferentes, por vezes esquisitas, dramáticas. Sinto como um antropólogo em Marte, porque de certa forma parecem relatos de um outro mundo.

E claro, há o livro em questão, Crime e Castigo. Um crime é cometido, todo o pensamento o assassino é visitado e temos acesso à construção da sua lógica mental. Lemos a organização que sustenta sua ação criminosa, a intensidade das conseqüências, o sofrimento e angústia, o desejo de ser pego, o alivio da fuga, a possibilidade de redenção.

Mas são várias histórias que decorrem simultaneamente. Há outros vários crimes que acontecem em paralelo, crimes menores talvez, mas que criam um jogo de acusações e desenham a pergunta: de qual crime e qual castigo estamos falando aqui? E talvez mais ainda: qual é o seu (do leitor) crime? Porque algum todos temos...

E há o final feliz. Algo inusitado e de certa forma chocante, porque a densidade do romance nos levaria para um beco sem saída que, entretanto, é contornado, por meio de uma alternativa que não podemos dizer que fosse a única, mas que cria no conjunto da obra uma tensão com o que veio antes, uma explicação, e uma solução que resignifica tudo o que lemos até ali.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

George Harrison – Living in the material world. Um filme de Martin Scorsese


Projeto Um filme quando valha à pena 
 




Falar dos Beatles pode ser fácil, afinal há tantas histórias, tantos filmes, fotos, entrevistas, shows e mais uma infinidade de registros que o que não falta é assunto. Mas falar dos Beatles pode ser difícil, porque dada essa mesma infinidade de material, o que pode ser dito que ainda tenha algum valor? Alguma originalidade? Algo a acrescentar? E mais ainda, talvez a pergunta central: e para que falar dos Beatles?

Há os que julguem John O cara, tem os que preferem Paul. De forma geral todos acham o Ringo o mais medíocre como músico, e há os que olham para o George com admiração e até um certo carinho, desses que a gente devota aos que morrem cedo demais.

Martin Scorsese não é dos diretores que eu mais goste, uma carreira muito irregular, com filmes ruins, alguns mais ou menos e um ou outro divertido, que eu sempre vejo como entretenimento, mais que como cinema autoral. Bem, depois de um filme muito ruim sobre os Stones eis que ele decide-se por fazer um sobre George Harrison.

Claro, falar de George é falar de George nos Beatles e dos Beatles, inevitavelmente. E é óbvio que o filme fala muito disso. Mas a lindeza do filme é não ficar nisso, por sinal é não ficar no George dos Beatles, mas na trajetória pessoal do cara.

Dado que a história dos Beatles é sobejamente conhecida, não se necessita perder muito tempo contando o que todos já sabem, e aí aparece a delicadeza e a generosidade do diretor com o escolhido para o filme: se conta a história da descoberta, das tentativas, das intenções. E conseguimos ver, ali no meio de tanta fama e dinheiro e loucura dos 60/70, a pessoa física, tentando lidar com as questões que valem a pena, sem afetação ou superficialidade, apenas tentando.

Há os momentos dispensáveis, mais anedóticos ou bobos, mas que de qualquer modo fizeram parte desse trajeto, mas há, e esse é o mérito do filme, a tentativa de trazer à luz a pessoa aglutinadora e inquieta.

O filme provavelmente terá uma segunda parte, a conferir!!

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Fiódor Dostoievsky - O Duplo - Projeto um livro sempre:


Fiódor Dostoievsky - O Duplo

Dentro da literatura convencionou-se que aquela categoria que trata de situações inverossímeis, impossíveis ou fantasiosas, tem o nome de literatura fantástica. Assim, escritos de ficção científica, Tolkien, Philip Dick e congêneres, entram numa caixinha e confortavelmente sabemos o que esperar ao iniciar um livro deles.

Bem, a coisa se complica quando vamos olhar a questão da literatura como a construção de um universo a parte do mundo cotidiano, função de qualquer das formas artísticas. Se complica também se ampliamos o foco dos autores evidentemente “fantásticos” como os citados acima, e vemos que mesmo em autores “realistas” (o que pode haver de realista no escrever, sobre o que quer que seja é uma boa questão...), temos situações “fantásticas”.

E este é o caso. Dostoievsky que iniciara sua carreira com Pobres Gentes, publica logo em seguida este O Duplo.  Texto relativamente curto, com situações completamente absurdas, criadas pela chegada de um homem exatamente igual a um outro, do qual invade a vida, o trabalho, as amizades, desafetos, desorganizando uma vida que já antes da chegada do duplo não era lá essas coisas...

Não desejo entrar em minúcias da tensão conseguida, lembra-me a dos filmes orientais, nos que parece que ninguém faz as perguntas que facilmente solucionariam (do nosso ponto de vista ocidental) os problemas que ali se apresentam mas...ninguém parece notar, nem questionar... nem preocupar-se com o que acontece ali.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

TOMBOY - Projeto Um filme quando valha a pena


TOMBOY

Outra pérola o cinema europeu. A diretora Céline Sciamma neste filme de 2011 consegue a delicadeza de contar uma história de um tema difícil e complexo, com a sutileza, leveza e beleza que o tema merece.

Uma família muda-se, a interação com as outras crianças do conjunto habitacional ocorre do modo que mais ou menos se espera, e “Michel” se aproxima de Liza, uma residente e a única menina adolescente, por isso também excluída de alguns jogos.

A história segue, a mãe de Michel está grávida, possivelmente de um menino, sua irmã menor cada vez mais participa das interações, até que o elemento chave das interações entre “Michel” e a turma se desvela na história (para o espectador ele já ficar evidente logo ao início do filme: Michel é na verdade Laura...

A maravilhosa condução nos priva da bobajada que um filme roliudiano faria: insights psicológicos, tentativas de explicar o travestismo e Laura e a omissão dos familiares, discussão da homossexualidade entre Laura e Liza etc etc etc. Por sorte é cinema francês, e da melhor qualidade!

Então não só não há nada disso, como o enfrentamento da situação com a firmeza que a situação pede, mas sem o jogo de culpas e investigações que estamos cada vez mais acostumados a ver no cinema e na vida quando algo ocorre.

Destaque para a atuação da menina Zoé, que faz Michel/Laura, e que nos deixa a dúvida o tempo todo se é um ator ou atriz mirim, a viver a ambigüidade e a possibilidade de ser mais que o determinado.


Como tampouco acredito que o filme aparecerá por aqui, colo abaixo o link para o repositório universal da humanidade...
http://www.megaupload.com/?d=DMWEPMZ7

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Uma Família - Projeto Um filme quando valha a pena


Uma Família

Assisti a este filme há vários dias, mas decidi esperar para escrever e recomendar, porque o filme merece ser recomendado, mas antes de tudo, ele merece tempo.

Não é sempre que o cinema dinamarquês chega aqui, então quando aparece algo a gente aproveita para conferir e ver o que se está fazendo e propondo. Este filme, se for representativo do momento cultural do país, indica que temos de ver muitos filmes de lá...

Quem gostou do maravilhoso “ As invasões bárbaras”, provavelmente vai adorar este aqui. Ecos do filme de Dennis Arcand se fazem ouvir em alguns momentos, sem soar nunca como plágio nem como inspiração, mas como cumplicidade, tocar temas importantes com respeito, carinho, delicadeza, sagacidade.

O dono de uma padaria tradicional descobre que o câncer que achava curado voltou com carga total, e a família se organiza, movimenta, choca, escapa, sofre, vive com as nuanças e possibilidades de cada membro. Com cada filho um modo de viver, falar, omitir, esperar; com a nova esposa, com o mundo.

A dureza da doença e da situação é incrementada pela dureza do protagonista, seco, árido, áspero, rígido num grau quase insuportável, carregando sofrimento e tristeza, cobrança e expectativa, medo por si e pela empresa, que provavelmente acabará, sem herdeiro apto a dar continuidade.

Uma nota sobre as interpretações, todas magníficas, humanas, densas, maravilhosas num filme tão duro.

E uma nota final sobre o final do filme, uma verdadeira aula de como não ser imbecil e como não tratar o expectador como idiota: é possível fazer finais felizes sem babaquices. Um elogio à vida, à certeza que apesar de tudo, e às vezes por causa de tudo, é possível viver.

Como o filme possivelmente não chegará aos cinemas ou vídeos, colo abaixo um link, da videoteca universal da humanidade...

http://www.megaupload.com/?d=XY2LZ58O

sábado, 22 de outubro de 2011

Win Wenders – Pina - Projeto Um filme quando valha a pena


Win Wenders – Pina

Wenders já ganhou um lugar de honra na história do cinema. Há os que gostem do Amigo Americano, há os que prefiram Paris, Texas, há os que se perguntam o que ele queria com Mel Gibson e o Hotel de Um milhão de dólares, e os que amaram a vista da capital portuguesa na História de Lisboa. Eu faço parte dos que acham Asas do Desejo um dOs filmes, com O maiúsculo e respeito e admiração intermináveis.

Com toda essa filmografia excepcional, de mais de 30 filmes, percorrendo documentários sobre o mestre do cinema japonês Ozu, o projeto musical Buena Vista Social Club, e ficções variadas, podíamos esperar que ele resolvesse sossegar o facho, ou pelo menos acomodar-se. Felizmente ele nos manda uma primorosa obra sobre o projeto de DançaTeatro de Pina Bausch, bailarina, coreógrafa e diretora do Tanztheater Wuppertal por 36 anos, até sua morte em 2009.

Filmar dança, como filmar teatro é um desafio que poucos dão conta. Cisne Negro conseguiu isso muito bem, com uma história que sustentava as cenas de palco e uma camera muito ágil. Wenders vai por outro caminho. Não filma nenhum espetáculo inteiro, na verdade filma várias cenas de espetáculos, às vezes deslocadas do palco, inseridas em outros contextos, mescladas a depoimentos sempre com voz em off, e os colaboradores-bailarinos expressando duplamente, pela voz antes gravada, e pela expressão facial/corporal agora ouvindo sua própria expressão.

E as cenas de dança. As cenas de dança. As cenas de dança. Lindas, moduladas em ciclos de repetição, mas não de esvaziamento criativo, movimentos que retornam, mas não são vazios ou mecânicos, antes, tentativas, sempre, de dizer o que não pode ser dito em palavras.

Sou um ignorante da dança, de todas as artes talvez esta seja a que mais dificuldade me traz, a que desafia o entendimento porque exatamente tem a abertura e a possibilidade de entendimentos que não são decodificáveis pela cabeça (dura, no meu caso...). O filme não facilita as coisas, não explica a dança ou a intenção, mas apresenta, de modo sublime, intenso e com um respeito gigantesco, o trabalho da companhia.

E por fim Pina, uma presença indicada por todos os bailarinos, às vezes por uma palavra, uma pergunta, uma insinuação, sua ausência deixa um vazio, no filme preenchido pelas falas e danças dos outros, fazendo viva a dança criada coletivamente sob sua direção mas, e agora que ela se foi, como criar?

Diz-se de modo geral e com certa presunção que neste mundo ninguém é insubstituível. Talvez isso seja verdadeiro para máquinas ou pessoas que se prestam a trabalhos de repetição. Para quem cria, todos são insubstituíveis. Pina.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Os espólios de Poynton – Henry James - Projeto um livro sempre


Os espólios de Poynton – Henry James

A literatura como qualquer das artes, existe quanto mais nos leve para outro lugar que aquele onde estamos, usando Fernando Pessoa, quanto mais nos mova, de nós. Ler é viver a possibilidade de estar em outro lugar e, desse outro lugar, ver e viver o mundo com outra perspectiva.

Quando o norte americano de nascença e britânico de adoção Henry James passa 200 páginas desenrolando uma trama sobre móveis e objetos de uma casa (a localizada na Poynton do título), e da disputa que os personagens desenvolvem sobre esses objetos, senti inicialmente a distância, o estranhamento e até o incômodo, de me ver num universo, que no meu imaginário é britânico, de aparências, formalidades sociais, jogos de convivência e cuidados.

Gradualmente porém, fui entrando naquela trama e percebendo que, como em qualquer trama artística, o tema do que se fala é uma das camadas significantes, mas há outras, do que se permite falar, e ver, e imaginar, sem ser sequer nomeado. E aí o texto ganha vida, brilho e intensidade. Como nas histórias de cavalaria medieval, nas que o amor nunca se consumia, mas era intensamente vivido, é a ausência, o não dito, o intuído que faz a potência do texto e permite que leiamos não o que está escrito no texto, mas o que o texto permite ver.

É uma história de amor, amor temido, amor correspondido, amor perdido. Mas é também uma história de perdas, perdas materiais, amorosas, temporais, de oportunidades. Acima de tudo é um jogo de xadrez estratégico, mas quem ganha é quem em algum momento resolve quebrar as regras do jogo, deixando de se importar com os desdobramentos sociais, e assumindo apenas o desejo e a necessidade.

Dostoievsky é visto como o grande psicólogo da alma russa ( o próximo a ser postado será dele por sinal), bem, Henry James creio que merece titulo análogo da alma britânica, para os que a idealizam, um ótimo meio de visualizar o que pode estar conjugado ...