Encontros e desencontros
(Lost in translation)
Sophia Coppola
EUA: 2003
O que se perde numa tradução?
Como dizer em outra língua algo que lhe é tão pessoal, tão próprio que parece
não ter sentido senão na sua língua? Esta questão básica do ato de traduzir,
estudada desde que escrever se tornou uma possibilidade, não tem resposta
final. Os italianos tem uma expressão, repetida à exaustão por qualquer
tradutor ou crítico literário: traduttore, traittore. Traduzir é trair. Trair o
original, trair o sentido inicial, trair o leitor que acha estar tendo contato
com um autor, quando na verdade é com o tradutor desse autor. Muitas
traições...
Não sei qual é o número de vezes
que assisti este filme, é de longe o melhor filme de Sophie Coppola, que
iniciou com As virgens suicidas, uma crítica ácida ao American way of life (que no filme vira american way of death...) e
depois teve entre outros o bom Maria Antonieta, o patético Somewhere e o fraquíssimo Bling
Ring, uma cineasta irregular que parece ainda não ter definido muito a que
veio.
Mas este Lost in Translation é uma pérola. Pérola de delicadeza, sutilezas,
nuanças e indicações leves. Pérola por trazer Bill Murray, um ator que nunca me
pareceu ter o menor conteúdo, tendo feito dezenas de filmecos bobos e comerciais,
num papel que lhe cai como uma luva, desde a primeira vez eu me perguntei: como
nunca ninguém percebeu que este cara é um ator dramático, e não cômico? Pérola
por detalhes, sinais, insinuações e mais delicadezas.
Charlotte terminou sua faculdade
de filosofia e acompanha o marido fotografo ao Japão, onde este vai trabalhar
um tempo. Está entediada e, mais que isso, perdida. Na vida, na cidade, na
língua, no casamento, na existência que não tem nenhum sentido. Bob Harris é um
ator já na curva do ocaso, contratado para fazer um comercial de whisky no
Japão, participar das filmagens, produção, divulgação etc. Seu casamento está também
na curva do ocaso, seus filhos o estranham e ele acha a vida um saco.
Ambos se encontrarão no hotel, e
sem que nada ocorra entre eles, tudo os une num lugar especial, o de
reconhecerem-se cúmplices numa vida que não lhes dá sentido, prazer ou
perspectiva. Solidão, tristeza, apatia, desilusão. Estão perdidos e a ida a um
outro território estrangeiro, no extremo do que isso pode significar, a
inserção em outra cultura, língua e dinâmica de vida, explicita o que perderam,
lost in translation.
Há achados muito legais. A trilha
sonora toda é parte indissociável do filme. O que se está dizendo nas letras
indica o que se passa com aquele personagem naquele momento, naquela situação,
naquela passagem do filme, uma vinculação orgânica que raramente vejo no
cinema, onde a música é usualmente música de fundo, para preencher um espaço,
como um abajur ou um quadro na parede, que não dizem nada além de estarem
preenchendo um espaço.
Quando o filme foi lançado houve
críticas de comunidades asiáticas que se sentiram ofendidas pelo modo como se
retratou o Japão e os japoneses. É curioso, porque se alguém deveria se sentir
ofendido deveriam ser os norte-americanos, apresentados como incapazes de
adaptar-se a qualquer diferença de rotina, organização e dinâmica social. A personagem
gringa que está lá para divulgar seu novo filme merece o framboesa de ouro pelo
personagem mais imbecil do ano...
Para terminar, há uma cena
antológica, porque tudo termina e esta relação tão especial, por
inqualificável, também necessitaria chagar a um fim, Harris necessita (ou
resigna-se) a voltar a seu país de origem. Ocorre no saguão do hotel aquela
despedida básica, formal, vazia, despida de todo o valor que havia sido
construído até então. Ele entra no carro e no caminho pede para descer um
pouco, alcança Charlotte e aí acontece a pérola final do filme. Nada de
discursos piegas ou emoções fáceis. Palavras ditas no ouvido que apenas
Charlotte ouviu e que nós podemos cada um imaginar o que quisermos,
traduzindo-nos no que fala e no que ouve aquilo que atravessa o filme todo para
deslumbrantemente chegar ao apogeu ali, na rua, num abraço presente e tocante. Lost
in Translation.
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